20 de julho de 2022

Mundo Cinza

Na minha rua têm umas três ou quatro turmas de gatos de rua. Todos são bem tratados, alimentados por duas das minhas vizinhas, além de castrados, vacinados e vermifugados por um bombeiro aposentado, o Sr. Francischini. São Francischini.
Um desses gatos da minha rua era o Cinza.
O Cinza vivia no jardim do casarão ao lado do meu prédio há alguns anos. Ele deve ter sido abandonado já adulto e nunca se enturmou direito. Morava ali junto com outros dois, uma pretinha e um rajadinho com peito branco. Os três pareciam refugiados, excluídos da gangue que vive em frente, perto do ginásio.
Sempre foi especialmente arisco e medroso, o Cinza. Mas tinha jeito de já ter tido uma família humana, e quando ele se sentia seguro, atrás do portão, dava toda a pinta de ser um gato doce e companheiro. Como o meu companheiro Choco Chocão, com quem passeio pela rua já faz 9 anos.
Choco também conhece os gatos da rua mas não tem por nenhum deles a fixação que acabou desenvolvendo pelo Cinza. Então, toda vez que saíamos de casa eu ficava esperto pra ver se o Cinza não estava na área antes de soltar o Choco da coleira. O nó é que o Choco não podia ver o Cinza, nem o Cinza ver o Choco. As hostilidades logo desandavam em perseguição. Era o Cinza correndo, o Choco correndo atrás, e eu correndo atrás do Choco, berrando.
Uma vez, numa dessas correrias, Cinza e Choco foram parar na garagem de um prédio no outro quarteirão. Minha sorte é que eu conhecia um dos moradores desse prédio: Conrado, o terraplanista, um dos melhores amigos do Choco, um cara que também passeia com o gato dele na rua – essa é uma história que fica pra depois. Liguei pro Conrado e resgatamos o Choco. O Cinza deve ter usado alguma magia de gato de rua pra se desmaterializar naquela garagem. Depois disso, nunca mais soltei o Choco da coleira.
Há um mês, mais ou menos, notei a falta do Cinza. Essa semana perguntei sobre ele para a Andréa, uma das mulheres que alimentam os gatos – elas conhecem cada um deles, dão até nome para os bichanos. Ela me disse, com muita raiva na voz, que ele tinha sido encontrado morto no gramado do ginásio, com marcas de estrangulamento. Também me disse que o perpetrador do ato covarde haverá de acertar as contas com Deus, que a justiça divina nunca falha.
Eu quis aquiescer – por ela, pelo Cinza, por mim, pelo Choco, pela tristeza que senti no momento. Não consegui. Disse a ela que era preferível tentar achar o culpado – os prédios têm muitas câmeras – do que esperar pela Retribuição do Criador. (Parei por aí. Se eu dissesse a ela o que penso sobre Deus, deuses, a natureza, o universo, era capaz de ela não me cumprimentar direito dali pra frente).
Às vezes me dá um pouco de raiva de não conseguir acreditar em Deus. Quando vejo o caixão de uma pessoa amada sendo enterrado, por exemplo. Mas quando eu soube do destino do Cinza senti algo inesperado, um desejo muito claro de que houvesse uma forma de divindade, uma forma bem definida de divindade: vingativa, feroz, com garras e presas afiadas, de olhos furiosos – um Deus-Gato, cuja função cósmica seria a de dilacerar eternamente a consciência dos que gratuitamente esvaziam o mundo de criaturas belas, os que se dão ao ignominioso prazer de exercer o poder de varrer da existência um ser mais fraco.


10 de abril de 2022

Árvores e esquecimentos

Resolvi deixar isso aqui pronto para quando viesse a efeméride. A de um ano a partir do dia da sua morte, ou do dia em que eu soube que você morreu. Talvez seja melhor publicar nesse dia, o dia em que eu soube que você tinha morrido. Nunca fui de deixar as coisas prontas por antecedência. Mas esperar pela efeméride para poder escrever algo para você não faz sentido. Você está comigo todos os dias, desde que acordo até a hora de dormir. Especialmente na hora de dormir. Penso em escrever algo para você todos os dias, e não sei por que não o fiz até agora, até pensar na data que se avizinha.

Tenho que ter uma deadline pra tudo. Até para dizer o que sinto ou fazer o que quero. Se eu soubesse qual era a sua deadline, teria ido até você e dito que precisava de você no mundo para que eu continuasse vivo. Pelo menos é isso que gosto de dizer a mim mesmo. Não sei se eu teria coragem de estragar o pouco que restava da sua existência tentando conversar contigo.

E de qualquer forma, você tem estado comigo desde subiu aquela escada e nunca mais te vi.

 

À efeméride. Faz um ano que você morreu, e aqui vou usar a minha velha ladainha, a que tenta plasmar tudo o que acontece na casca do nosso planetinha a um contexto cósmico: uma volta ao redor do Sol desde que você morreu. Soo ridiculamente grandiloquente tentando ser poético, então vamos lidar só com coisas concretas: o que a dureza do real sugere é que o planetinha deu mais ou menos 4,5 bilhões, ou melhor, 4 mil milhões e meio de voltas ao redor do Sol desde que nasceu. 39 desses 4.500.000.000 rodopios, ou 0,00000086% deles, me diz o computador, foram acompanhados da sua presença. Numa dessas voltas você esteve de mãos dadas comigo.

Dizem que o planetinha deve dar mais uns quatro ou cinco mil milhões desses rodopios até que o Sol, agora inimaginavelmente maior, inflado, vermelho, em uma morte lenta, o engula. Éons antes disso, eu e você e a voltinha que demos juntos já teremos sido esquecidos. Quaisquer indícios de que tenhamos existido – eu, você e a nossa voltinha – devidamente deletados, sem volta. Não haverá nenhum vestígio da proporção ínfima (zero vírgula zero zero zero zero zero zero zero e mais alguma insignificância numérica) de tempo a que corresponde as nossas voltinhas diante dos olhos do Sol.

Para observadores celestes desse futuro chocantemente distante, estranhos habitantes da superfície de algum outro planetinha em volta de algum outro sol, esse processo de apagamento final do sistema solar será um espetáculo de pequenas proporções, mas também único e irrepetível. Cada estrela de sequência principal que termina em nebulosa planetária acaba de um jeito diferente, mas todos terrivelmente lindos, terrivelmente lindos.

A última coisa que os seus terrivelmente lindos olhos me disseram é que a vida é imponderável. Em seguida, deram a volta e se afastaram. E foram virar longínquas nebulosas planetárias selvagens uma volta e meia depois. E nessa última volta desde que você morreu, volta e meia eu voltei à nossa voltinha.

Uma volta.

30 de julho de 2019

Memento

528
00:37:12,400 --> 00:37:15,000
Eu sei que não posso
tê-la de volta.

529
00:37:16,200 --> 00:37:18,150
Mas não quero
acordar de manhã

530
00:37:18,151 --> 00:37:20,800
pensando que ela
ainda está aqui.

531
00:37:21,600 --> 00:37:23,900
Fico deitado sem saber

532
00:37:23,901 --> 00:37:26,400
por quanto tempo
estou sozinho.

533
00:37:32,200 --> 00:37:34,100
Então como...

534
00:37:34,900 --> 00:37:36,900
Como posso me curar?

535
00:37:39,400 --> 00:37:42,800
Como devo me curar
se não consigo...

536
00:37:43,100 --> 00:37:45,400
sentir o tempo?

16 de maio de 2019

Gracefully fade out of view

I wish I was a beautiful balloon
I would rise up
Above it all
And fade out of view
Gracefully fade
Fade out of view
What have you turned me into?


What have you gone
And done
My love?
Incinerated in the morning sun

High
So high
I just
May
Never come down





10 de maio de 2019

Potássio

Tinha tudo pra ser uma acreção progressiva
Mas a colisão foi insuficientemente inelástica
Vaporizamo-nos
Você foi parar em Marte
Eu, acelerado
Atravesso o braço de Perseus
Éons em Laplace-trip

29 de março de 2019

Cantiga de amigo

Woke up this morning singing an old, old Beatles song.

Lembro de palavras, mas não de quais eram, exatamente. Quando penso nelas, nas palavras, elas me escapam. O que não me escapa, o que me perfura o pâncreas e me causa a ressaca de uma noite extática, é a anatomia da cena. A voz. Os dedos agarrando a capa do livro. Os dedos. As cutículas. As unhas. As linhas da pele daquelas mãos. As veias daquelas mãos. A textura daquela pele que cobre aquelas veias. Os olhos perseguindo as palavras. As pupilas pretas. Os verdes circundantes. As sobrancelhas que dançam ao ritmo das palavras das quais não me lembro. O nariz. A boca. As linhas de expressão da boca e dos olhos. Os sons que saem da boca. Into my arms, oh Lord, into my arms.

Sinto que o mês presente me assassina. Soltar um foguete e encher o céu de balão. E ir ser selvagem entre árvores e esquecimentos. Me mentiu jurando amor que não tem fim. O zóio da cobra verde. Hoje foi que arreparei. Eis o tempo dos assassinos. Bandeira branca enfiada em pau forte.

Algumas palavras me vêm. E me matam.

Vem, amiga, e conte uma coisa linda pra mim. Pode ser qualquer texto, qualquer poesia, qualquer sequência numérica. Leia para mim uma bula de Lexotan, meu amor. Leia para mim o manual da impressora. A fatura da CPFL. Leia. Decodifique algo para mim. Faça passar um registro escrito qualquer pelos seus olhos, pelo seu cérebro, pelo seu sangue. Transforme-o na voz, a sua voz. Perturbe o ar. Acaricie meus tímpanos. Faça das minhas sinapses os seus fantoches. Quero respirar fundo, minha amiga, mulher. Quero ser eu mesmo. Nu. Amado. Pleno. Escolhido.

Banhado pela luz da sua voz em madrugadas eternas eu nunca morro. Ali eu nunca morro.

Uma cena em pedra. Uma Pompéia só nossa. A vida ao redor é a velha morte de sempre.

29 de setembro de 2018

K0 - As últimas testemunhas

Este é o primeiro de uma série de posts sem deadline dedicados a descrever desordenadamente minhas impressões de leituras ligadas a um ser muito especial, K. Enquanto meu coração continuar batendo, K. passeará pelas minhas artérias e veias como um Dennis Quaid miniaturizado, pegando carona nos meus glóbulos vermelhos, às vezes levando oxigênio, noutras trazendo gás carbônico.

As últimas testemunhas: crianças na segunda guerra mundial é o último livro publicado pela Companhia das Letras de autoria da bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, cujo trabalho é ao mesmo tempo modesto e brilhante: coletar, organizar e apresentar testemunhos de acontecimentos-chave da história soviética. Esse último livro reúne, claro, o registro de depoimentos daqueles que ainda eram pequenos quando o mundo mergulhou profundamente no breu da segunda guerra, que os russos chamam de grande guerra patriótica. São mais de 250 páginas de inferno.

É um inferno que não se pode imaginar mais cruel: a carnificina observada e experimentada por olhos inocentes. É uma combinação quase poética e inteiramente crua de crianças brincando de guerrinha entre corpos de soldados congelados e estraçalhados. Crianças lembrando de seus brinquedos e da execução sumária de seus pais. Crianças ao mesmo tempo fascinadas e aterrorizadas com os aviões.

São crianças, e sabem que as casas incendiadas queimam com as famílias lá dentro. Com os amiguinhos, com os titios, com os irmãozinhos, lá dentro. Meninos e meninas pequenos que vêem o pai agonizando e a mãe sendo enterrada, chorando diante da cova da mãe, não entendendo porque a mãe morreu se tinha apenas um buraquinho de bala no rosto. São pessoas de seis ou sete anos de idade vendo uma jovem morta com uma criança de colo que ainda mama em seu peito. São crianças que não apenas sentem mas entendem a fome. E que sabem - ah, que triste - sabem o que estão fazendo quando atraem para casa um carinhoso cachorrinho de rua, pois aquele é o único alimento que encontraram em muito, muito tempo. "Perdão, querido cachorro... perdão".

Svetlana quase nunca interfere, deixando toda a eloquência para a memória viva dos entrevistados. Mesmo quando não muito detalhadas e com evidentes lacunas, as ruminações mnemônicas das testemunhas são tremendamente eloquentes. "A guerra é meu livro de história", diz um dos então meninos. "Minha solidão... Perdi a época da infância, ela fugiu da minha vida. Sou uma pessoa sem infância, em vez de infância tenho a guerra. ... Na vida, a única coisa que depois me abalou desse jeito foi o amor. Quando me apaixonei... Conheci o amor..." Com o perdão do lugar-comum, é inevitável a sensação de que essas pessoas estão em estado permanente de guerra consigo mesmas - em guerra com suas memórias, com seu passado longínquo. Algumas vezes a dor da memória é verbalizada, explícita. Mas em todos os casos ela se faz presente. A dor da memória nunca vai embora. Nunca vai embora.

Às vezes o livro abre frestas nas opressivas paredes do horror e o amor, a fraternidade e a colaboração entre os seres humanos banham os testemunhos com uma luz benevolente: "o que ficou comigo da guerra? Não entendo o que são pessoas desconhecidas, porque eu e meu irmão crescemos entre pessoas desconhecidas. Pessoas desconhecidas nos salvaram. Mas como elas seriam desconhecidas para mim? Todas as pessoas estão ligadas. Vivo com esse sentimento, mesmo que muitas vezes me decepcione. A vida em tempo de paz é diferente..."

"Todas as pessoas estão ligadas". Nenhum ser humano precisa ser um completo desconhecido que machuca o outro, que mata e oblitera o outro. Esse livro lindo e profundamente triste sugere que nem mesmo a perda da inocência pelo choque da violência torna inevitáveis o esquecimento da decência e a necessidade da destruição. Enquanto estivermos sobre essa terra, nós, humanos, podemos sempre escolher não violentar o outro. Podemos sempre enxergar no outro a mesma carne que nos constitui, e assim o fazendo, respeitar a sua integridade. De outra forma, o caos reina e a guerra vive - mesmo que só na paisagem interna de quem um dia os experimentou.

19 de setembro de 2018

Sinto-me

Obliterado.

?

Como reconstruir uma vida inteira aos 38 anos de idade?

Como começar a construir uma vida beirando os 40?

Eu nem mesmo sei quem sou e o que quero.

No que sou bom?

No que sou fraco?

O que posso dar ao mundo?

O que quero dar ao mundo?

O que posso tirar dele? O que devo?

O que devo?


8 de setembro de 2018

Mal-estar

Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos, nunca mais desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor.

Freud, no começo de O Mal-Estar na Civilização.

27 de agosto de 2018

Uma ode a ninguém

Por que escrever algo quando se tem Billy Corgan à mão?

You can't bring me back, you can't bring me back
'Cause I gave it all back to you
Through sacred alleys, the living wrecks
Wreak their havoc upon this world
The disenchanted, the romantics
The body and face and soul of you is gone down that deep black hole


Destroy the mind, destroy the body
But you cannot destroy the heart
Destroy the mind, destroy the body
But you cannot destroy the heart


...

And I give it all back to you
I give it all back to you, yeah
I give it all back to you
For you
No way, I don't need it, I don't need your love to disconnect




26 de agosto de 2018

Fala de novo, Thom

Onde eu termino e você começa

Há um buraco no meio
Há um buraco onde nos encontramos
Onde eu termino e você começa

E eu sinto muito por nós
Os dinossauros vagam pela Terra
O céu fica verde
Onde eu termino e você começa

Eu estou nas nuvens
Eu estou nas nuvens
E não consigo
E não consigo descer
Consigo assistir mas não participar
Onde eu termino e você começa
Onde você
Você me deixou sozinho
Você me deixou sozinho

Um X vai marcar o lugar
Como ondas quebrando
Como uma casa caindo no mar
No mar

Eu vou comer vocês vivos
Eu vou comer vocês vivos
Eu vou comer vocês vivos
Eu vou comer vocês vivos
E não haverá mais mentiras
Não haverá mais mentiras
Não haverá mais mentiras
Não haverá mais mentiras
Eu vou comer vocês vivos
Eu vou comer vocês vivos
Eu vou comer vocês vivos
Eu vou comer vocês vivos
E não haverá mais mentiras
Não haverá mais mentiras
Não haverá mais mentiras
Não haverá mais mentiras
Eu vou comer vocês vivos
Eu vou comer vocês vivos
Eu vou comer vocês vivos

Fala, Thom

Como desaparecer completamente

Aquele ali
Aquele ali não sou eu
Eu vou
Onde bem entender
Atravesso paredes
Flutuo pelo Liffey
Eu não estou aqui
Isso não está acontecendo
Eu não estou aqui
Eu não estou aqui

Daqui a pouco
Eu partirei
O momento já foi
Sim, já foi
E eu não estou aqui
Isso não está acontecendo
Eu não estou aqui
Eu não estou aqui

Luzes estroboscópicas
E alto-falantes estourados
Fogos de artifício
E furacões
Estrelas
E balões
Eu não estou aqui
Isso não está acontecendo
Eu não estou aqui
Eu não estou aqui

Stanley abre uma porta

A sala é completamente escura. Não há interruptores. Stanley não encontra porta alguma. Sente-se sozinho momentaneamente, mas logo percebe a presença de dois seres. São as companhias que já o protegeram em outra ocasião. Eles enxergam no escuro e dão a Stanley a percepção de que a vida é preciosa, ainda que assustadora. Mas Stanley se deita. Deseja desaparecer. Completamente. 

Um relógio começa a fazer barulho, tic tac, tic tac, atrás da parede.

1 de agosto de 2018

A parábola de Stanley

E lá vai ele. Stanley entra num cômodo vazio, perfeitamente iluminado, sem cantos escuros, rodeado de portas. A porta atrás dele se fecha, e não vai mais abrir. Nem há vontade de voltar para lá - um cômodo com uma parede cinza manchada e muitas lembranças tristes. Não há canto da sala sem alguma porta, nenhuma parede onde poderia encostar acuado, escondendo o rosto do mundo. Stanley gostaria de poder abrir uma porta que dá para um abismo, mas não se jogaria no oblívio por decisão própria. Ele apenas gostaria que, subitamente, um alçapão se abrisse sob seus pés. Alguns segundos de choque, terror, e pronto. Fim da história. Mas não há saída debaixo de seus pés, nem no teto, perfeitamente branco, perfeitamente iluminado - uma luz estranha, de origem incerta, que banha o corpo de Stanley por igual. Não há janelas no cômodo. Todas as portas se parecem iguais. Por mais que desejasse sair desse lugar sem estímulos nem ameaças em que se meteu, Stanley teme abrir qualquer uma das portas. Se pudesse saber o que há detrás de todas elas, certamente escolheria a melhor. Ou a mais fácil. Ou a mais difícil e bonita. Mas a única escolha que se coloca para ele é abrir alguma dessas portas brancas ou ficar no meio do cômodo, parado, num incômodo moderado, que ao menos evita as incógnitas de cada porta.

Stanley sabe que não está sozinho. Dentro dele há uma menina de olhos verdes doloridos, que carrega consigo desde que entrou na sala iluminada. Ele sabe que passar de um cômodo para outro pode, e quase com certeza vai, apagar essa presença dentro dele. Assim foi, afinal, que uma outra presença desapareceu dele. Quando Stanley se perde dentro de si olhando para o carpete marrom, o Narrador, sempre presente, sempre presente, infalível, diz: "Stanley, então, decidiu sair dessa incômoda situação abrindo qualquer uma das portas. A incerteza inerente a todas as portas não o freou por um instante". Como ocorreu nos outros cômodos e corredores do túnel de sua história, ele sente ao mesmo tempo dois impulsos contraditórios: seguir e contrariar a ordem velada. Seguir o que diz o Narrador já o colocou em situações tenebrosas, no passado. Noutras, ao contrariá-lo, Stanley encontrou perigos que não podia ter imaginado, terríveis, terríveis. O cômodo atual não aparenta armadilha alguma. Qual seria o perigo de ficar nesse cômodo? Olha em volta. Não há nada que o ameace ao redor. Seria ele mesmo, o perigo? Estaria dentro dele, o perigo? Stanley olha para o teto mais uma vez. Olha para o carpete. Acende um cigarro. Acende outro cigarro. E outro. E outro. E outro. E outro. Até que o cômodo se encha de cinzas e possa se afogar nelas.

23 de julho de 2018

Butterfly with bullet wings

Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage
Despite all my rage I'm still just a rat in a cage

20 de abril de 2017

Lembrete

* Você existe plasmado a uma natureza que, embora parcialmente inteligível, permanece - e talvez nunca deixe de ser - um grande enigma para mentes como a nossa.

* Você habita a superfície de um planeta. Essa superfície é plástica e impermanente. Nada garante que vestígios de sua existência serão preservados nessa superfície a longo prazo. É provável que a natureza continuará seu caminho até o momento em que será obliterado todo e qualquer vestígio de que um dia existiram seres vivos neste planeta. Como se não houvéssemos jamais existido.

* Seu tempo de vida é um brevíssimo instante no tempo. O que chamamos de passado é um abismo de tempo - até onde se sabe, são bilhões de anos. O que chamamos de futuro é uma incógnita, mas nada proíbe que seja um abismo ainda maior, ou talvez eterno.

* O planeta em que você vive orbita uma estrela bastante comum. Há bilhões delas na Via Láctea. Há bilhões de bilhões delas em outros bilhões de galáxias. Há um número ainda maior de estrelas de outros tipos, e é provável que boa parte desse número possa também abrigar planetas capazes de sustentar a vida.

 * Muito provavelmente há trilhões de sistemas planetários no que chamamos de universo observável. Estatisticamente, é difícil sustentar que a vida não possa ter se desenvolvido em incontáveis outros planetas. A descoberta de planetas extrassolares (que orbitam outras estrelas que não o Sol) tem apenas duas décadas. Ainda não sabemos o suficiente sobre como a vida surgiu, sobre se a vida é um acidente ou não, se a vida pode surgir independentemente em lugares diferentes, e assim por diante. A ciência ainda engatinha. Ainda há muito a ser descoberto e conhecido. Você pode fazer parte disso.

* Tudo isso é resultado de um conhecimento construído por mentes falíveis e limitadas, como a sua, por meio de investigações empíricas falíveis e limitadas. Esse conhecimento é historicamente contingente e dependente de um arcabouço cultural. Não há garantias sólidas de que qualquer parte desse conhecimento permaneça considerada verdadeira para sempre. Há ainda menos garantias de que o conhecimento dado por revelações, êxtases e visões religiosas nos coloca numa posição melhor para solucionar o enigma - a não ser que você esteja disposto a acreditar muito e dar-se por satisfeito.

* Há quem veja nossa tentativa de compreender o grande enigma como peixes num aquário nutrindo esperanças de compreender toda a realidade que existe além do cubículo. Há boas razões para ver as coisas assim, assim como há boas razões para nutrir a esperança de que possamos, com a melhor engenhosidade que nosso aparato fisiológico é capaz de produzir, formular algo que preste sobre o oceano cósmico daqui de nosso pequeno coral provinciano. Para assim, quem sabe, superarmos passo a passo algumas de nossas limitações. Talvez seja impossível saber qual dessas visões é a mais precisa. Ambas podem ser valiosas.

* É permitido, é necessário, que você sonhe e invente e exponha seus sonhos e invenções para o mundo. Mas a natureza é duríssima e dificilmente se deixará encaixotar por suas formulações. A cultura pode ser ainda mais dura. Sempre haverá mentes enrijecidas por dogmas. Seja corajoso.

1 de agosto de 2014

Gaza

A qualquer momento
O crânio aberto
O rosto desfigurado
O intestino na calçada
A qualquer momento
O tórax espatifado
A metade carbonizada
No carro carbonizado
Dentes brancos
A qualquer hora
A cabeça decepada
A perna retorcida
O joelho pra um lado
O pé para o outro
A qualquer momento
A mão intacta
Que fazia e criava
Morta
Num minuto qualquer
Uma mão
Só a mão
No pé da escada
No canto do quarto
No meio da rua
No capô do carro
No meio da rua
Sangue
Jorrado
Espirrado
Vermelho
De criança
Na parede
No teto
No poste
No meio da rua
A qualquer hora
Por todos os lados

23 de junho de 2014

Searching for Sugar Man

Acabei de ver o documentário Searching for Sugar Man. O filme retrata brilhantemente, quase como um thriller investigativo, uma das histórias mais sensacionais da música contemporânea: a de Sixto Rodriguez, uma espécie de Dylan mexicano que gravou dois discos no início dos anos 70 em Detroit. Destinados à mais completa obscuridade nos EUA, os discos fizeram um sucesso enorme na África do Sul (e só lá), na mesma época.

Mais tarde, alguns sulafricanos se surpreenderiam ao saber que o artista é um desconhecido na América. Dois deles tentaram, nos anos 90, saber mais sobre Rodriguez. Eles não tinham mais nenhuma informação sobre o músico além de um nome, uma foto na capa, e histórias desencontradas sobre sua morte.

Qualquer coisa que eu diga além disso será, fatalmente, um baita spoiler. A única coisa que posso dizer é: assistam. Tem o potencial de mudar a visão atual sobre o que é a arte e quem é o artista.

Vim a saber agora que o filme ganhou o Oscar de melhor documentário em 2012. O reconhecimento devido a uma grande obra me alegrou, só para logo em seguida eu me deparar com a informação de que seu jovem diretor, Malik Bendjelloul, se matou em maio passado, com 36 anos.

Malik e Sixto, muito obrigado por embelezarem o mundo com grande arte.

22 de agosto de 2013

Tábula rasa

Li o artigo polêmico do Helio Schwartsman, "Demografia do Nobel" (FSP, 10/08). Em nenhum momento o colunista disse que judeus são mais inteligentes que muçulmanos. Ele afirma que há um fenômeno a ser estudado (a disparidade no número de laureados) e menciona uma hipótese genética. É uma provocação, obviamente.

A obtusidade está no fato de que ele nem sequer menciona a possibilidade de que a disparidade seja suficientemente explicada por via histórica, sócio-cultural e econômica. Há motivos suficientes para pensar que essa abordagem explica satisfatoriamente a disparidade em questão. Minha opinião é que a genética provavelmente seria uma resposta incorreta para uma pergunta legítima, o que não quer dizer que haja algo de errado em levantar uma hipótese genética para qualquer fenômeno humano, inclusive este. Mas por que apenas a hipótese genética foi aventada por Schwartsman?

Isso tem a ver com a intenção do texto em alvejar a ideia de "tábula rasa", que nós, das humanidades, tanto compramos sem perceber. É uma referência a um livro de Steven Pinker, que denuncia as pré-suposições envolvidas na recusa do nosso aspecto natural, animal, orgânico. Estamos plasmados na natureza. Nossa existência é o resultado de milhões de anos de pulsação da vida no planeta, e nossa breve pulsação é parte minúscula desse mundo que não depende de nós para existir. Negar que a natureza tenha algo a ver com a mente humana é se render sem querer a uma concepção do espírito humano como algo desconectado do mundo natural, algo independente do organismo. Você pode até defender esse tipo de coisa mas dificilmente encontrará evidências para sustentar suas ideias, hoje (posso estar errado, claro, e o futuro poderá revelar meu engano). A genética e as neurociências, pelo contrário, atualmente as têm às pencas. É preciso ter isso claro em mente antes de acusar qualquer pessoa de cientificismo.

Não somos determinados pela natureza porque desenvolvemos um mundo simbólico que não obedece às mesmas regras do mundo natural. Mesmo assim, é muito cedo para descartarmos qualquer explicação naturalista. O melhor a fazer no atual estado do conhecimento é reconhecer a complexidade das explicações para fenômenos humanos sem fazer tábula rasa e sem partir para o determinismo biológico. Tanto os entusiastas das explicações genéticas quanto os que fazem tábula rasa da natureza humana deveriam levar isso em consideração antes de arrotar suas últimas suposições acerca da diversidade humana.

Quando você aceita que toda a variedade entre seres humanos se explica apenas por meios de hipóteses não-naturais, você está admitindo como verdade uma suposição sem justificativa. É isso o que o Schwartsman poderia ter dito em vez de apenas sugerir uma causa genética como possível explicação, embora eu entenda que ele queria provocar os mais sensíveis defensores da tábula rasa - o que é sempre bom.

De onde você vem?